BRINCANDO NA HISTÓRIA
ALTMAN, Raquel Zumbano
BRINCANDO NA HISTÓRIA

Raquel Zumbano Altman


In DEL PRIORE, Mary (org.) HISTÓRIA DAS CRIANÇAS NO BRASIL. São Paulo: Editora Contexto, 1999.

O seio oferecido, os olhos apaixonados que seguem seus movimentos, o contato com a face da mãe que o embala, o sorriso do pai que o recebe nos braços são os primeiros brinquedos do bebê. Aos poucos ele percebe as próprias mãos, segura os pés, tateia nariz, orelhas, boca, despertando seus sentidos num mundo de descobertas. É a aventura de descobrir-se e reconhecer sons, cores, formas. Despertando para o mundo que a cerca, a criança brinca.
No ciclo da vida sempre há de ser assim. No começo, a criança é seu próprio brinquedo, a mãe é seu brinquedo, o espaço que a cerca, tudo é brinquedo, tudo é brincadeira.
A folha verde que balança ao vento, a borboleta que bate asas, o barulho da chuva, o farfalhar dos passos sobre as folhas secas espalhadas pelo chão, as vozes dos animais, o brilho do sol, a claridade da lua fazem parte, com certeza, das descobertas do indiozinho que há muito mais de quinhentos anos nascia no Brasil.
Cuidados especiais são dedicados à mulher indígena quando dá à luz, cabendo, porém, ao pai o costume de meter-se com a criança na rede, cobrindo-se muito bem e dali saindo somente com a queda do cordão umbilical, considerando como questão de honra prestar os maiores cuidados à mãe para que a criança não sofra.

A primeira operação que se fazia à criança era achatar-lhe o nariz, esmagando-o com o dedo polegar; depois furava-se-lhe o lábio, se era rapaz; o pai pintava-o de preto e encarnado e punha-lhe ao lado na rede uma macana (Espécie de maça ou clava usada pelos indígenas.)pequena e o seu arquinho e seta, dizendo-lhe: Quando cresceres, meu filho, sê forte, e vinga-te dos teus inimigos! (1)

E assim, em meio à rica natureza, recebe a criança seu primeiro objeto-brinquedo que só irá usar muito mais tarde, tratando de imitar os adultos e nada preocupado em vingar-se de inimigos.

Os pais não tem cousa que mais amem que os filhos, e quem a seus filhos faz algum bem, tem dos pais quanto quer; as mães os trazem em uns pedaços de rêdes, a que chamam typoya, de ordinário os trazem às costas ou na ilharga escarranchados, e com elles andão por onde quer que vão, com elles às costas trabalhão por calmas, chuvas e frio; nenhum gênero de castigo têm para os filhos.(2)


O OBJETO-BRINQUEDO: A NATUREZA

Um bebê, provavelmente para afastar os maus espíritos, se diverte com um chocalho formado por cascas de frutas secas ou outros elementos da natureza. Mais tarde, sementes de frutas, pedras, seixos de madeira, ossinhos de animais, conchas e terra são seus brinquedos. Folhas e cascas de árvores servem de fôrma para o barro. Penas e asas de aves se transformam em objetos para a rica imaginação infantil.
Uma mãe, em priscas eras, para acalmar e distrair seu filho, juntou galhos secos e folhas, formando um feixe e deu-lhe a aparência primitiva de uma boneca (3). Entre as tribos indígenas brasileiras algumas mães fazem brinquedos toscos de barro, imitando animais ou o homem, muito simples, "desprovidos geralmente de extremidades e até de cabeça com a preocupação de torná-los menos quebradiços nas mãos das crianças"(4). As bonecas indígenas não foram transmitidas à cultura brasileira, mas os índios carajás, no rio Araguaia, mantiveram a tradição, fazendo as próprias meninas seus "licocós" de barro, com grandes nádegas, grandes seios, numa imitação da mulher adulta e talvez grávida. O barro é colhido pelas mães na beira do rio e a ele são acrescidas flores e raízes, depois triturado, modelado, seco ou cozido. As bonecas são adornadas com colares de sementes, casas de caracol e uma faixa de entrecasca de árvore é colocada rodeando a cintura. Medem aproximadamente vinte centímetros, sendo alvo do carinho maternal das meninas (5).
Já outras figuras de madeira e barro, imitando animais como macacos, besouros, tartarugas, lagartixas, sapos, são testemunho do gosto das crianças pela representação de seus animais preferidos. Não são figuras bonitas, são toscas e até grosseiras, feitas por mãos inseguras de crianças ou por mãos rudes de adultos, mas têm importante papel afetivo, favorecendo a interação criança-adulto e criança-objeto. Com a dramatização de cenas domésticas do dia-a-dia, sentimentos são compreendidos e exteriorizados.
Atravessando a correnteza dos rios mais rasos, cruzando a mata, lá vão as crianças, nuas e em liberdade, levando a sério sua brincadeira de caçar animais, tratar-lhes as feridas, domesticando pássaros e, com especial prazer, ensinando papagaios a falar. Macacos e lagartos são os preferidos; muitas cobras também são de estimação. Com seu arco e flecha, um menino de dois, três anos ensaia suas habilidades usando pássaros e andorinhas, como alvo logo se incluindo os cães, trazidos pelos portugueses. Acompanhando os pais à caça e à pesca, de tão hábeis, mostram-se caçadores consumados (6). Cedo as crianças aprendem a fazer canoas de uma só casca. E nesta canoa lá vão eles, sempre junto dos adultos, com seus pequenos remos ou com as próprias mãos e, com flechinhas, tratando de pescar ou até apanhando com as mãos os peixes à vista. Outro método de pesca "era baterem uns a água, enquanto outros se mantinham prontos com cabaças, cortadas à feição de canecas, para meterem por baixo do peixe miúdo, ao vir este à superfície atordoado ou espantado". Para pescar com vara utilizam espinhos. "Até que os europeus lhes forneceram anzóis; eram estes o maior presente que se podia fazer às crianças" (7).
Vivendo na natureza, têm os índios os sentidos aguçados.

Se um tupinambá se perdia na floresta deitava-se no chão e farejava o fogo, que pelo olfato percebia a meia légua de distância, e depois trepava à árvore mais alta, e procurava avistar fumo, que descobria de mais longe do que alcançava o melhor presbita europeu. (8)

E esta é, também, uma divertida brincadeira para as crianças que, céleres, correm atrás dos pais, imitando suas atitudes e gestos, preparando-se para a vida adulta.
As meninas acompanham as mães, principalmente nos afazeres que cabem às mulheres indígenas: cuidar das plantações, colher e trazer legumes em suas canastras, cozer a mandioca, fazer a farinha, cuidar dos irmãos a quem carregam às costas numa tipóia, balançar a rede.
Ao entardecer, sentam-se, como as mães, junto às outras crianças, tecendo com o fuso e trocando idéias, numa atividade que é um verdadeiro faz-de-conta.(9)


FABRICANDO BRINQUEDOS

O bodoque - pequena arma manejada pelas crianças com serventia para abater caças, aves, lagartixas - é um dos primeiros brinquedos citados em narrativa de viagem publicada na Alemanha, em 1820. O bodoque, bodoc ou baducca, ou arco de bodoque, palavra de origem árabe, de bondok, é feito de madeira "airi". É construído com duas cordas separadas por duas pecinhas de madeira. No meio as cordas são unidas por uma espécie de malha, onde se coloca uma bola de barro ou uma pequena pedra redonda. A corda e o projétil são retesados para trás pelo polegar e o indicador da mão direita, soltando-se, abruptamente, para arremessar o projétil. Com o bodoque as crianças abatem "um pequeno pássaro a grande distância e o que é mais, até borboletas pousadas nas flores", como relata Langsdorff. Durante muito tempo o bodoque foi considerado como brinquedo de origem indígena e pré-colombiana (10). Em 1918, o sueco Erland Nordenskiöld define-o como uma combinação da funda e do arco já usados pelos romanos como o arcus ballista, passando para a França como arbalète ou baliste e para a Espanha e Portugal como ballesta, balista e besta, utilizados militarmente até o surgimento e domínio da pólvora e das armas curtas (11).
Fazem girar entre mãos, num movimento ágil, piões feitos de frutos rígidos e ocos, com um furo onde colocam um pauzinho fixado

04/05/2005

 


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