A FORMAÇÃO LÚDICA DO PROFESSOR (1)
Cyrce Andrade
"Esses viveres: olhar
Esses olhares: tecer
Esses teceres: contar
Esses contares: viver" (2)
Neste texto você vai encontrar muitos olhares e muitos contares de pessoas que vivem, pensam e escrevem sobre a formação de professores. E também daquelas que, escrevendo literatura e poesia, nos mostram de uma maneira sensível o papel do lúdico na vida de gente de todo tamanho. Escolhi compartilhar as idéias destes que têm sido meus parceiros no jogo de formação sobre o lúdico. Conhecendo algumas das suas idéias, vai ficar mais interessante ler suas obras, buscar a bibliografia, que aparece nas notas de rodapé. Torço para que a sua leitura seja prazerosa, como deve ser um bom jogo. Vamos lá!
"A gente sempre termina a semana de formação com um passeio - cinema, museu, exposição - não sei bem porquê, acho que isto deveria ser no primeiro dia do curso." Educadora de Creche Comunitária da Cidade do Rio de Janeiro
"Pois é, a gente sempre deixa o lúdico para o final do dia ou para a sexta-feira. Outro dia, quando eu experimentei os jogos como primeira atividade, descobri que isto trouxe um outro clima entre as crianças. E foi muito mais fácil fazer as outras atividades com a turma." Professora de Educação Infantil da Rede Pública da Cidade de São Paulo
A fala destas educadoras puxa o lúdico para o começo, aposta nas suas possibilidades de integração, descoberta, encontro - consigo mesmo e com os outros. É um olhar para o lúdico que desperta, que provoca, que suscita. Tão diferente daquele que recompensa, que premia, que consola...
Evoluímos muito no discurso acerca do brincar, reconhecemos cada vez mais seu significado para a criança e suas possibilidades nas áreas de educação, cultura e lazer, e estamos cada vez mais cientes dos riscos que corremos. O primeiro deles talvez seja o de separar estas três áreas que caminham melhor juntas. Mas não é só por esta razão que temos encontrado algumas pedras no caminho.
Na educação, muitas vezes fazemos com que um jogo fantástico seja visto mais pela oportunidade de ensinar cores - como se elas não estivessem no mundo! - que pelas suas possibilidades de favorecer as relações sociais, de suscitar medo e alegria, de provocar o grupo a encontrar soluções para um desafio. Ao atribuir a um brinquedo ou brincadeira uma função didática é importante termos o cuidado de preservar sua essência lúdica; se não, corremos o risco de ouvir outra vez de uma criança: "Ai, ai, ai, já virou brincadeira de escola!", explicitando o momento em que já não tinha mais graça.
Algumas vezes atribuímos ao brincar poderes mágicos que ele não tem. Não é porque agregamos a ele conteúdos ou valores, como a cooperação, que a criança vai incorporá-los. Precisamos nos lembrar que crianças aprendem o mundo menos pelos seus brinquedos e jogos e mais pelas relações humanas que a cercam. Muitas vezes, uma proposta instigante de um professor pode ser mais interessante para as crianças do que uma brincadeira, aprender é tão rico e prazeroso quanto brincar, há uma paixão em conhecer.
Na área do lazer - e também da educação - o lúdico encontra-se muitas vezes centrado no acervo. Os brinquedos e jogos são importantes por aquilo que possibilitam. A supervalorização do objeto, em uma inversão de valores, acaba trazendo muita ansiedade às crianças e aos seus educadores. O acervo é importante por tudo o que pode oferecer, mas quando ele ganha exagerada importância em si mesmo, instala-se uma neurose de cuidados, que inviabiliza seu uso. O acervo diz muito de uma proposta lúdica tanto pelos itens incluídos, como por aqueles excluídos, tanto por sua qualidade e quantidade, quanto pela maneira como está disposto. Mas, do mesmo jeito que não se constrói uma escola apenas com quadro-negro, giz, cadernos e lápis; não se constrói um espaço lúdico apenas com uma sala de jogos e brinquedos. Ele, como a escola, não existe sem adultos e crianças envolvidos em uma proposta.
Na área da cultura, o lúdico aparece com muita freqüência no "resgate das brincadeiras tradicionais" do mês de agosto - Mês do Folclore - em uma ótica de cultura, memória e história estáticas. Podemos enxergá-las melhor com os olhos de Sônia Kramer (3)para quem a formação cultural é "direito de todos se considerarmos que todos (crianças, jovens e adultos) somos indivíduos sociais, sujeitos históricos, cidadãos e cidadãs que tem direitos sociais, que são produzidos na cultura e produtores de cultura."
A infância integra os adultos que somos hoje, não é coisa do passado. Por esta razão, buscar o brincar e a infância é estar com o adulto de hoje e não a criança de ontem. E as evocações têm o sentido que lhes dá Madalena Freire (4):
"Histórias que entram em cena mediadas por suas lembranças. Tais lembranças necessitam ser faladas, escritas, lidas, assumidas, afirmadas, escutadas, para poderem assim ganhar 'status' de memória, serem lapidadas. (...) Outra descoberta é conhecer a si próprio e aos outros, não só como sujeito cognitivo, mas também afetivo. Emocionar-se com as próprias lembranças e com as dos outros, avermelhar e chorar (...) Todos esses instantes de nossas lembranças quando coletivizados nos comprovam que não temos só memória, mas 'somos memória', somos autores de nossa história pedagógica e política."
Ainda que a prática não acompanhe a evolução do discurso, ainda que o brincar aconteça, na maioria das vezes, no tempo de espera, no descanso, no tempo que sobra ou entremeando "atividades produtivas", a mudança do discurso sinaliza o desejo de uma outra prática, que precisa ser colocada em lugar e tempo concretos, reais. Valorizar a brincadeira não é apenas permiti-la, é suscitá-la. E para que isto aconteça, precisamos perceber o brincar como ato de descoberta, de investigação, de criação.
Se no plano das idéias a importância de brincar é consenso, o que o coloca tão distante do cotidiano? Esses olhares críticos sobre as intervenções existentes estão longe de ser uma crítica aos professores, ao contrário, a intenção é compreender a razão destas práticas e defender o direito do professor a uma formação lúdica acerca do lúdico. Uma formação que lhe permita experimentar, descobrir, conhecer as possibilidades para si próprio, na perspectiva de que esta seja uma experiência transformadora, que contribua para a construção de uma outra concepção do lúdico e para uma intervenção de melhor qualidade junto aos seus alunos, independentemente da idade que eles tenham.
Acreditamos que a ampliação e a diversidade de experiências oferecidas às crianças lhes fornecem mais elementos para o seu processo de construção de conhecimento e para o desenvolvimento da sua imaginação, da sua capacidade criadora. Não deveríamos acreditar também que a experiência acumulada do professor está relacionada à sua imaginação, à sua capacidade de criar? Quando pensamos nos adultos vemos, quase sempre, sua criação como inspiração, como um dom - que se tem ou não se tem. Não consideramos que a experiência cultural do adulto pode favorecer sua imaginação. E, provavelmente por isso, a contemplamos pouco nos cursos para educadores. Criação e ludicidade têm muitas semelhanças e são essenciais no processo de formação do ser humano.
Muitas vezes, na fase inicial da formação, os adultos só se permitem brincar fazendo de conta que são crianças, imitando comportamentos que depreciam, ironizando, debochando, e, obviamente, explicitando seu olhar sobre o brincar. Nestes casos, infantilizar é sinônimo de reduzir, de diminuir não apenas o brincar, mas a criança que brinca. As concepções de criança, brincar e infância não aparecem de forma dissociada. Elas se entrelaçam no discurso, explicitam-se na prática e nos desafiam na coerência. Coerência que não cai do céu, mas que se busca, que se conquis
|