Visitar a Oficina da Criança de Montemor-o- Novo fazia parte da programação da IX Conferência Internacional de Ludotecas, realizada em Lisboa em 2002. No trajeto de ônibus fomos, ao contrário das caravelas, caminhando para o interior do país. Descemos em uma praça ampla, com esculturas coloridas que anunciavam a presença da ludicidade. No velho teatro da praça, entramos pelo porão. E é aí que a magia se dá mesmo sem varinha de condão. Um corredor deságua na ludoteca, no entanto, já pelo caminho espreitamos os diferentes ateliês. A espreita acontece pelas janelas das paredes baixas que separam as várias oficinas. Na ocasião, fomos recebidas pela coordenadora da Oficina da Criança, que em um discurso emocionado e emocionante nos apresentou o trabalho da equipe. Tendo vivido em Angola, Terezinha Tavares não deixou fora de seu discurso a guerra, a ditadura e a descoberta da liberdade. Nós, brasileiros, havíamos experimentado histórias semelhantes. Certamente, o passado mais recente era um fio mais sólido a nos unir que a antiga colonização portuguesa. Sensibilizada pelas palavras - ainda ecoando na minha cabeça - e pelo cenário em que elas tinham sido proferidas, sentei-me em um canto com os olhos rasos d'água. Foram esses mesmos olhos que caminharam pelo espaço antes das minhas pernas. Lembro-me de que depois, entre tabuleiros, casinha de boneca, percursos no chão, brinquei muito! Ouvi também lindos versos de um senhor, poeta. Os versos eram brasileiros, em minha homenagem, mas soavam lindamente no seu sotaque. Feliciana, profissional da equipe, me contou do trabalho e dos diferentes ateliês. Sempre achei que as cores de uma ludoteca vêm dos olhos de quem nela trabalha e naquele porão mágico, repleto de cores, que encantava por sua beleza, Feliciana atestou minha teoria: sua luz brilhava mais. Todos nós recebemos, como lembrança, um brinquedo popular da região. A minha pequena boneca - com cabeça de grão-de-bico e corpo de palito - e algumas poucas fotos foram os elementos materiais que me acompanharam de volta ao Brasil. O imaterial não era mensurável e somava-se à descoberta da literatura, da música e de um Portugal que, embora já conhecesse, ainda não havia visto.
Atravessei novamente o Atlântico e o Tejo em 2008. Desta vez o congresso era sobre jogos de tabuleiro e eu tinha uns dias a mais em terra lusitana. Na última hora, havia colocado na minha bagagem de mão as poucas fotos da Oficina da Criança, pois não encontrei nenhum outro dado daquele projeto que me encantara tanto, que ironia! Com a amiga querida que me hospedava mais uma vez, revirei o mapa de Portugal. Ela sim lembrava -se pelo menos por qual região havia eu andado, nada é tão longe por lá e logo o nome de Montemor- o- Novo picou o meu dedo. Acaso? O ônibus que tomaria dali a uns dias para Estremoz fazia ali a sua única parada. Desci apreensiva naquela pequena rodoviária tão parecida com Minas da minha infância. Olhei ao redor e aquelas jovens de cadernos em punho pareciam ser o melhor alvo: descrevi a praça, o teatro e a oficina, a resposta veio rapidamente: siga em frente por duas quadras e " lá estás" . Mas... só amanhã! Tinha pela frente a bonita feira de arte popular de Estremoz, realizada anualmente.
Pouco antes das 10h00 do dia seguinte, desembarquei radiante com a perspectiva de rever a Oficina. Reconheci a praça, a porta do porão. Na entrada um grande cartaz nos previne: "Se a cultura é cara, experimente a ignorância", autor anônimo, sábio. Uma senhora me conduz à coordenadora, naquele momento em reunião com sua pequena equipe. Reconheço imediatamente Feliciana e Terezinha, mostro a foto, fio condutor daquele encontro, lembro o discurso, conto do meu encanto e da minha caminhada para o reencontro. Terezinha me diz que não havia esquecido a emoção que a Oficina havia provocado em mim seis anos atrás, relatara a cena a outras pessoas, feliz em saber que o trabalho de sua equipe despertava reconhecimento e emoção.
Desta vez, poderia ficar lá o dia inteiro ... ver a Oficina com crianças e jovens, acompanhar o trabalho dessas profissionais, era maravilhoso!
O dia começou com a chegada de cento e tantos pequenos alunos de quatro municípios: Fundão, Marinha Grande, Montemor-o-Novo e Vila Real de Santo Antônio. As crianças tomaram seu lanche na praça, foram organizadas em grupos que misturavam as cores de seus bonés (cada cidade tinha uma cor diferente) e recebidos por uma das pessoas da equipe. Naquela manhã, metade das crianças foi para a ludoteca, outra metade foi para ateliês de pintura em azulejo. Depois, trocaram. Suas professoras os acompanhavam e havia uma responsável da Oficina para cada grupo de vinte e cinco crianças nos ateliês. Naquele momento, a coordenadora fazia exatamente o mesmo trabalho que outros membros da equipe, postura fundamental na sua prática educativa. Há alguns anos trabalhei na formação de educadores em uma escola de educação infantil da rede pública de São Paulo, onde o diretor participava efetivamente das atividades propostas juntamente com sua equipe de professores, o que propiciou resultados valiosos. Lembro-me também de uma criança brasileira, espantada diante da proposta de um jogo cooperativo: "Professora, eu entendi certo? Você vai brincar com a gente e ainda está do nosso lado?!?" Pois é, a síntese vem da criança: estar ao lado, do lado.
Na Oficina da Criança alguns professores estavam ao lado, riam, divertiam-se, aproveitavam a oportunidade para brincar com seus alunos, estavam do seu lado. Outras, prestativas,apoiavam o trabalho da equipe da Oficina, estavam ao lado do grupo. Surpreendi-me com a que parecia estar contra, gritava com seu aluno, que absolutamente concentrado no seu lindo desenho com grafite no azulejo, havia, segundo ela, "monopolizado" o lápis. Parei e me contive, queria ver que saída teria a monitora da atividade. Serenamente, ela focou no material, colocou mais lápis sobre a mesa e observou: "Não há problema, temos lápis em quantidade para todos." No final do dia, conversamos, havia uma clara proposta em não gerar conflitos. "Há professores mais e menos habituados ao nosso trabalho, aos poucos eles vão conhecendo, alguns se transformam também." Sua sabedoria vinha ainda de vinte anos neste trabalho. Foi igualmente atraente observá-la a convidar as crianças a colorir os azulejos umas das outras em um grande painel formado sobre a mesa, observando com elas onde poderia haver mais cores. Realmente eles ficam lindos quando bem coloridos e depois de passarem pelo o forno! O resultado, elas o receberiam dias depois.
Depois do almoço - teria ainda muitas histórias da minha curta manhã, mas escolhi compartilhar algumas e as reflexões que geraram - veria as crianças e jovens da cidade no uso regular do espaço e ainda um trabalho das estagiárias que faziam sua formação para o magistério.
O trabalho das estagiárias para uma turma de crianças pequenas, vindas de uma escola, era sobre Alexander Calder, seus móbiles e estábiles. Alusões à obra do artista estavam presentes nas suas camisetas e seus chapéus, ambos interessantíssimos. O teatro de sombras, apresentado pelas meninas estagiárias, atrás de um enorme lençol, mostrava algumas réplicas. Depois, o prazer das crianças em produzir em duplas a apresentação das sombras para as demais crianças era visível. Dali foram para o ateliê de pintura, Calder os acompanhou. A articulação da proposta destas três jovens era surpreendente e sua execução, atenta.
Na mesma sala de projeção assisti a alguns vídeos de ações já realizadas: cinema de animação, fábulas, festas. Vi também painéis e esculturas preparadas para um próximo projeto. Fiz meu próprio avental com carimbos desenhados pelas crianças, também de azulejos de crianças foi feita a minha bandeja.
Brinquei na ludoteca, girei dentro do pião vermelho, como havia feito seis anos antes. Desta vez, pude ainda ensinar a uma menina como provocar esta deliciosa sensação de vertigem. Acompa
08/09/2008 |